terça-feira, 14 de abril de 2015

Lone Wolf and Cub: Parte II - Obra



A primeira  parte deste artigo sobre a obra Lone Wolf and the Cub está neste link:
Lone Wolf and Cub: Parte I - Introdução

Aqui, em Portugal, comecei a seguir a obra Lone Wolf and Cub através da edição importada da Dark Horse, dividida em 28 volumes, 142 capítulos, de uma violência que se sublima num trabalho de rara mestria, tanto artístico quanto poético. O formato de livro, parecido com o formato japonês, tinha uns meros 15mm x 10mm e, para quem, como eu, que estava habituado à escala do formato europeu, ou do formato dos comics americanos, confesso «custava-me a leitura». No entanto, não me impediu de ficar fascinado.



























A verdade é que a primeira edição de Lone Wolf and Cub data de 1970 no Japão e, de lá para cá, a obra tem-se mantido assim, imune à desvalorização que o tempo opera, por vezes, sobre determinados trabalhos (daí dizerem-se "datados"), Lone Wolf and Cub não é "datado". Aliás, não me resta a mínima dúvida, Lone Wolf and Cub ganhou um pedaço de imortalidade, característica comum às grandes peças de arte.

Nos Estados Unidos, a primeira edição traduzida para a língua inglesa dá-se pelas mãos da First Comics, que o publicava em pequenos volumes que continham entre 64 a 128 páginas, a arte das capas foi sendo feita por artistas americanos, de maior ou menor renome: Frank Miller; Bill Sienkiewicz; Matt Wagner; Mike Ploog; e Ray Lago. Ora, com o encerramento da First Comics, Lone Wolf and Cub ficava por ser editado na totalidade, pelo que, a Dark Horse, veio recuperar (no formato que me chegou mais tarde às minhas mãos) e concluir o trabalho de edição da obra: o 28º volume seria lançado a Dezembro de 2002.

A obra consegue sobreviver por si só, capítulo a capítulo, como sendo uma história única, um episódio, ou então, como um todo coerente, a trama. Quer dizer, se eu pegar num volume ao acaso, em nada se perde começar a ler um capítulo qualquer «nem que seja, para abrir o apetite». Para quem não conhece a obra, aconselho a fazer isso mesmo. Há determinados aspectos no tema e na arte que devem ser realçados aqui, em Lone Wolf and Cub, na minha opinião são, fundamentalmente, três: a violência; a sexualidade; e a espiritualidade. Sigo com uma breve reflexão sobre os mesmos. Começo pelo primeiro.

Da violência. O aspecto que, porventura, primeiro nos capta a atenção são as suas sequências gráficas de uma violência quase soberba, quase bela: um fenómeno inquietante. Lone Wolf (pai) calcorreia as estradas da Japão feudal imaginada, no período Edo, transportando num carrinho de mão Cub (o filho). Nele se apregoa, escrito numa bandeira "son for hire, sword for hire, suiō school, Ittō Ogami" ou seja "aluga-se filho, aluga-se espada, escola suiō, Ittō Ogami". E essa imagem, que abre a obra (Vol.1 Cap.1), assim como a imagem final, que é a da dupla que, passada a provação (decorrente do ofício que é a do assassino a contrato) segue em direcção ao sol poente, fica-nos na memória: quase que parece uma versão mais séria de um Lucky Luke de Morris. Há, sim, algures, um paralelismo entre a Japão feudal e o faroeste americano que vos deixo à imaginação.

As sequências de batalha são quase cinematográficas: tão bem nos descreve o desenho que quase as conseguimos visualizar. O resultado vai sendo, invariavelmente, o mesmo, os protagonistas saem vencedores, mais ou menos incólumes. Ogami Ittō (Lone Wolf) é um homem com uma missão (de vingança), e ao percorrer esse caminho, o caminho do assassino, vai deixando um rasto de destruição, e de mortos, atrás de si e do seu filho. Depois, vai-nos sendo apresentada toda uma parafernália de armas, técnicas e estratégias, em situações únicas de combate, movimentos fluidos e graciosos, e muito sangue.

A espada de Ogami Ittō, a dotanuki, é uma arma pesada e robusta do género da katana (curva e com, aproximadamente, 60cm de comprimento) e é inspirada, possivelmente, numa conhecida escola de mestres ferreiros da altura. Mas, a verdade, é que ao longo da série os autores não se coíbem de explorar a eficácia de outro género de armas que não somente a tradicional espada. É o caso das armas de fogo (Vol.5 Cap.28) introduzidas pelos portugueses no Japão, ou vários outros tipos de lanças, ou outras formas mais ou menos criativas de armas, algumas mesmo inspiradas em ferramentas agrícolas.

É-nos apresentada a técnica ex-líbris do protagonista "o golpe suiō, talhar a onda", em "O caminho branco por entre os rios" (Vol.3 Cap.17) aí, Bizen, um dos descendentes de Yagiū Retsudō (arqui-inimigo de Ogami Ittō), é derrotado, morre. Ou, a técnica de supressão das emoções "as cinco rodas dos Yagiū", técnica que se acaba por revelar, para o utilizador, mais que tudo, como «as cinco rodas do sofrimento» (Vol.15 Cap.76). E, por fim, tendo em vista atingir os fins propostos (contrato de assassino), Ogami Ittō usa-se de estratégias de combate baseadas, por exemplo, na "Arte da guerra" de Sun Tzu, para derrotar o adversário, como o é em "O soldado é o castelo" (Vol.6 Cap.32).

Antes de terminar este ponto queria apenas deixar um texto que me reflecte o espanto, no lirismo que se associa à violência em Lone Wolf and Cub, em "A flauta do tigre caído" (Vol.3 Cap.15), na hora da sua morte um dos irmãos Bentenrai: "O meu pescoço... Soa... Como um assobio / Digno do carrasco do Shōgun... O meu sangue jorra... Do corte diagonal no pescoço / Como o vento de encontro às árvores nuas / Chamam-lhe... Mogaribue... Flauta do tigre caído... Sonhei ser capaz de fazer um corte que cantasse / E agora... Ouço-o em mim... Irónico..."

Da sexualidade. Aviso à navegação, em Lone Wolf and Cub há pouco pudor pelo que se aconselha, à boa maneira americana "viewer discretion". E o pudor que há, é um pudor bem sensível e compreensível, o pai resguarda sempre o filho a assistir a cenas menos apropriadas. E essas cenas, mais ou menos sugeridas, em certas ocasiões, conseguem atingir um grau bem elevado de gore.

Esse à vontade com a sexualidade reflecte-se numa constatação bem simples: na história, tanto há homens como há mulheres; e são diferentes, sim, têm formas distintas de agir ou de se representar, papeis diferenciados mas, ambos, são tratados com respeito, tanto nas suas vertentes "más" como nas suas vertentes "boas".

Kazuo Koike, argumentista, mostra-se exímio na arte de representar tanto a persona masculina quanto a feminina, por vezes é ela que está em primeiro plano, como em "a pousada do último crisântemo" (Vol.7 Cap.37) uma mulher aguarda pacientemente o dia da sua vingança enquanto trabalha numa pousada. Esta facilidade com que o argumentista tem em desenvolver as personagens de forma a torná-las única (nos seus modos de pensar, agir e ser), como todos nós somos, é também um dos pontos críticos a favor da genialidade da obra.
























 


Essa capacidade de surpreender, de trabalhar outras profundidades à alma dos personagens, é levada ao seu expoente em "Fortuna, fado" (Vol.20 Cap.98) com a apresentação de Abe Tanoshi. A par de Ogami Ittō, Ogami Daigorō (Cub), e Yagiū Retsudō, Abe Tanoshi é das personagens melhor desenvolvidas em Lone Wolf and Cub. Representa o inverso, Abe Tanoshi é o provador oficial do Shōgun, mestre envenenador, representa a ganância. E é, sim, incrível a forma como a narrativa nos obriga a aproximar de uma personagem que, à partida é "repugnante", para se resolver de uma forma mais ou menos expectável que não revelo, é claro.

Da espiritualidade. A mim, a primeira coisa que me salta à vista depois de lida e relida a obra é o uso e recurso ao número como figura, não só de estilo, mas também de significado "numerologia, se quiserem", que imprime consistência ao enredo. E, esse aspecto, quer se queira quer não, dá-lhe força. Dá-lhe ritmo, também. E música. Ora, veja-se, em "Eco do assassino" (Vol.09 Cap.47) Ogami Daigorō aprende a contar até 10 enquanto está no banho com o pai, o artista preenche cinco pranchas com esse simples exercício. É música. Ou, em "À espera das chuvas" (Vol.01 Cap.06) Ogami Daigorō canta até à exaustão "Senhor figo / Senhora cenoura / Pimenta, cogumelo / Bardana e cevada / Lah la la lah / As sete flores da primavera, as enguias / Pepino, doce milho/ Lah la la lah". Música.

Sim, a um olhar mais atento, não deixa de faltar à obra uma componente mais espiritual, mágica, ou mesmo religiosa, se quiserem. A componente musical tem um "quê!" de transcendente. Sim. Depois, as referências à tradição budista são constantes, às raízes do código de conduta, do guerreiro, "Bushido", ou outros, o código de conduta do assassino. Nem lhe falta, sequer, uma referência à introdução do cristianismo no Japão e ao Kirishitan-Gari "perseguição aos cristãos" em "O dia dos demónios" (Vol.14 Cap.72).

Jizō, ou Ksitigarbha, é uma das divindades mais veneradas no Japão, Jizō é um Boddhisattva. E, segundo a tradição budista, Boddhisattva é um ser iluminado que, motivado por uma infinita compaixão, atingiu o estado de Buda. Jizō é, também, o senhor dos seis caminhos. E, Ogami Ittō e Ogami Daigorō vivem no cruzamento desses seis caminhos (e das quatro vidas) com o inferno budista (Rikudō Shishō, ou Naraka) guardado pelo demónio cabeça de boi Gozu e pelo demónio cabeça de cavalo Mezu (Vol.14 Cap.71). O símbolo desses demónios é o talismã que convoca os clientes do assassino, Ogami Ittō. No cruzamento dos seis caminhos (e das quatro vidas), Ogami Ittō atinge a perfeição, e esse estado de iluminação, autoriza-o "quando encontrares o Buda, mata-o" (Vol.02 Cap.13).




Mais não digo. Leiam.

(Continua...)



6 comentários:

  1. Grande texto Nuno, Vê-se que adoraste a obra. É isto que os japoneses têm que já não encontro mais do nosso lado. Um tipo fica completamente imerso na história e na arte. Sem côr, sem grandes formatos, só muita arte e muita história.

    Acabei de ler o Death Note, Até respirei fundo quando terminei. Com algumas criticas que se possam tecer ao argumento da 2ª parte, mas mesmo assim, é tudo de uma genialidade enorme e completamente elaborado. Se puderes lê o Bakuman dos mesmos autores. Não, mesmo que não possas, arranja e lê o Bakuman. É tão elaborado como a anterior mas é sobre criação de BD e o mundo dos mangakas da Shonen Jump. A sério, lê aquilo. Como entusiasta de BD tens de ler aquilo :) Abraço.

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  2. Luis Sanches
    Esse artigo sobre o Lone Wolf não é meu, é do Ricardo Rosado!
    :P
    Quanto ao Death Note para mim só é excepcional até ao final da 1ª parte... a seguir para mim é esticar a obra.
    Vai sair um livro pela Devir deste desenhador: All You Need is Kill, já fiz o lançamento dias atrás.
    ;)

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  3. Sim, Luis Sanches, adorei a obra, daí o texto "ser um grande texto", obrigado, mas não só, tento manter essa qualidade independentemente do que acho.

    Confesso que só conheço a versão animada de Death Note, uma coisa é certa, os japoneses têm trabalho desenvolvido na área do cyberpunk (género que muito me entusiasma) de grande qualidade.

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  4. Olá Ricardo, desculpa a confusão lá em cima. Li o texto e não reparei em quem assinoou. Mas o elogio mantém-se, muito bom texto mesmo :)

    Em relação ao Death Note, se ainda não leram, leiam primeiro o Bakuman. Não sei se é porque gosto de desenhar e tentar criar histórias para Bd, mas acho que Bakuman devia ser leitura obrigatória para toda a gente que gosta de Bd. Tem lá um romancezito teenager, mas que passa perfeitamente ao lado e não incomoda. Sem ser isso, 2/3 da obra é muito boa. Entra-se muito nisto da criação de Bd e vê-se que quem fez tem muita adoração por todas aquelas personagens que todos nós gostamos.

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  5. Ora essa, Luis Sanches, tudo bem, acontece. Agradeço a dica, assim que possa dou, sim, uma vista de olhos a Bakuman. Abraço.

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Bongadas