"Azul escuro
Azul azure
Azul marinho
Azul indigo
Azul cyan
Azul mar
O azul tornou-se uma cor quente
Amo-te Emma, tu és o ser da minha vida"
(Retirado do diário de Clémentine)
Que é que se pode dizer… mais uma pérola que saiu por alturas do monolítico e mofento Amadora BD!
Esta foi mais uma obra de qualidade superior publicada em português pela editora Arte de Autor, que continua a construir o seu muito bom catálogo de BD devagar, mas com bastante predicado.
Desta vez temos mais um Romance Gráfico e à semelhança de
Fun Home de Allison Bechdel, as personagens giram à volta do mundo homossexual.
O Azul é uma Cor Quente (
Le Bleu est une Couleur Chaud no original) foi escrito, desenhado e pintado por
Julie Maroh, ocupando-lhe 5 anos da sua vida, iniciando esta obra aos 19 anos. Foi publicado em 2010 pela
Glénat, sendo posteriormente traduzido para seis Línguas (para além do francês). Conquistou vários prémios, com relevância para o
Prix du Public Fnac-SNCF no
Festival d'Angoulême 2011.
Como referi no início, em Portugal foi a Arte de Autor que o publicou em 2016.
Neste livro a sexualidade, amizade, identidade, família e amor, são eficazmente explorados pela autora, por vezes com bastante intensidade. Aliás este livro começa logo intensamente porque logo na primeira páginas descobrimos que uma das protagonistas está morta. Isto é uma informação básica, pois a acção desenrola-se toda a partir do diário de Clémentine, lido por Emma.
O diário de Clém inicia-se de uma forma ingénua própria de uma adolescente ainda à procura de rumo na vida, as suas amizades, o espaço escolar, os rapazes…
Sim, neste o caso, o rapaz. E logo no primeiro encontro com esse rapaz existe um momento em que Clém no meio do cinzento vislumbra uma cabeleira azul. Momento marcante da vida futura, que vai provocar confusão na cabeça da adolescente, que vai entrar nos sonhos dela de uma maneira sexualmente confusa.
É aqui que começa uma bela história de amor.
O
status social manda que Clém tenha um namorado, e ela tem. Mas no fundo não é isso que quer. Debate-se como uma adolescente se pode debater na descoberta da sexualidade, a confusão é bem patente, e aumentada por um beijo de uma amiga.
Os conflitos na cabeça de Clém provocam-lhe um humor conturbado, sobretudo depois que um colega homossexual a convida para uma saída nocturna a bares
gay.
E aqui pela segunda vez encontra Emma, com os seus incontornáveis cabelos azuis.
Os encontros passem de fugazes a habituais, em segredo da família e da namorada de Emma. E Clém vai crescendo, amadurecendo, sabendo cada vez mais aquilo que quer. O mundo é cinzento, com salpicos de cores esbatidas… menos uma. O Azul. O Azul passa a ser uma cor quente para Clém.
E com o amadurecimento vêm as certezas. Ela quer apenas amar Emma, e como esta diz à mãe de Clém, sela fosse um rapaz Clém ia amá-la na mesma.
O livro prolonga-se por mais 10 anos na vida destas duas mulheres, mostrando a luta para manter a relação acesa. Clém apesar de amar Emma nunca ficou completamente convencida da sua homossexualidade, sempre foi permeável à influência da sociedade, ao contrário de Emma. Isto acaba por provocar
stress na sua relação.
Tudo isto sempre acaba por ficar ampliado pela rejeição dos pais, e da sociedade na sua generalidade. Extrapolando para nós leitores…
Digam-me quantos de vocês que politicamente aceitam a homossexualidade, mas no vosso meio de amigos gozam com os ditos homossexuais? Eu já o fiz. Quantos de vocês dizem que eles, homossexuais, não devem ser penalizados na sociedade, que têm os mesmo direitos, mas se um deles for um homem ou mulher de sucesso ou vos passar à frente no trabalho, vocês sentem um misto de inveja/raiva surda devido a essa situação? Quantos de vocês que para a sociedade são pessoas muito abertas, se um dos vossos filhos for homossexual acham que foi o pior castigos de que podiam ser vítimas…
…sim com o tempo eu fui melhorando, e na realidade neste momento consigo criar alguma empatia com este tipo de problemas e situações. Não é fácil para um homossexual navegar socialmente sem problemas. A autora foca este tipo de problemas de uma maneira que eu diria natural, sem o
stress da luta pelos direitos etc. Não é que não sejam referidos, mas não são o cerne, estão apenas subjacentes. O cerne é mesmo o amor. Só apenas isso com todos os seus problemas.
Julie Maroh joga muito bem com os pontos fortes e fracos das suas protagonistas, conseguindo um excelente romance, nunca deixando a narrativa cair no marasmo. No que respeito à parte gráfica eu adorei. O desenho é muito bom, muito expressivo. As personagens estão muito bem caracterizadas sendo quase certo que Maroh de certeza foi buscar os olhos de Clém, e sobretudo de Emma, ao registo Manga aumentando-os ligeiramente para aumentar a expressão destas duas personagens.
A cor básica são tons de cinzento acastanhado tipo sépia, salpicados em algumas páginas por verdes, laranjas e azuis esbatidos, ou seja basicamente tudo muito suave e frio ao mesmo tempo, excepto uma coisa: o cabelo azul de Emma. Adorei!
A narrativa é contada pela voz de Clém, mas na realidade quem lê, lembra e sente, é Emma. Uma forma dolorosa de contar uma história que não pode acabar bem, como eu disse atrás, Clém está morta antes do livro começar…
Sim é verdade… esta BD foi adaptada a um filme. Não falei nisto de propósito. O filme chama-se “A Vida de Adèle” e ganhou um prémio no festival de Cannes. Não falei porque achei que o mau título do filme estragou a excelente capa que esta edição deveria ter, visto que segundo apurei com a editora foram obrigados a colocar na capa a menção ao filme. Afff…
O Leituras de BD recomenda vivamente este livro. Mais uma excelente edição da BD em Portugal.
Boas leituras