terça-feira, 17 de novembro de 2015

Entrevista a Rubén Pellejero



Esta é a transcrição completa de uma entrevista realizada ao autor espanhol Rubén Pellejero, em parceria pelo Leituras de BD e pela Cinemic Magazine, a video-revista online de cinema, comics e videojogos, também disponível no Meo Kanal 753444. A entrevista com Pellejero foi incluída no 44º episódio.

Rubén Pellejero em 2015. Foto de Selby May.
Rubén Pellejero é o novo artista do relançado Corto Maltese. Nasceu em Badalona, Espanha, a 20 de Dezembro de 1952, e é conhecido por ter co-criado as séries "Monsieur Griffaton" e "Historias en FM" para a revista Cimoc e "Dieter Lumpen" para a revista Cairo, nos anos 80, e os álbuns El Silencio de Malka e Aromm, nos anos 90, com o escritor argentino Jorge Zentner. Mais recentemente, trabalhou com Denis Lapière em álbuns como Un Peu de Fumée Bleue… e L'Impertinence d'un Été. O seu primeiro álbum de Corto Maltese, escrito por Juan Díaz Canales, autor de Blacksad, chama-se "Sous le Soleil de Minuit" e foi recentemente lançado em francês pela Casterman.
Podemos começar a falar do Corto Maltese, a grande novidade que estás a fazer. Pelo que eu vi da arte promocional, consegues imitar o estilo do Hugo Pratt mas os cenários são completamente diferentes. É por causa dos roteiros do Juan Díaz Canales ou é o teu próprio estilo que se vai sobrepor?
-        É preciso ter uma coisa em conta. Não é uma cópia do Corto Maltese. Em nenhum momento se pretendeu fazer uma cópia exacta de Corto Maltese. Aliás, penso que seria um erro, tudo o que fosse uma cópia de Hugo Pratt seria sempre inferior ao que ele fez. Entendes? E o único sentido de continuar Corto Maltese é respeitando a essência das personagens e das histórias. Corto Maltese está encerrado com Hugo Pratt. A continuição tem que seguir dentro de outro caminho, tentar reflectir o ambiente, sobretudo a atmosfera, digamos, das histórias de corto Maltese e trazendo algo novo. Nós adoptarmos este projecto baseia-se em que nos respeite como autores, porque também temos as nossas próprias decisões para o projeto. Uma vulgar cópia seria um trabalho anódino, sem nenhum tipo de interesse. Teríamos que transportar a personalidade do autor. De resto, este foi a única maneira de nos interessarmos por este projeto. Por um outro lado, respeitar Pratt, que não veria feita justiça se emulado de um modo sistemático, mas sim, o que queremos conseguir é dar ao leitor à atmosfera 'Pratteana' para que as personagens possam participar em aventuras, tendo em conta que a hora de Corto já está feita, acabou quando Hugo Pratt faleceu. Era este aspecto que queria clarificar. Em nenhum momento quisemos fazer uma cópia.

Vocês preocuparam-se com a cronologia onde vão colocar as vossas histórias, comparadas com as histórias de Pratt?
-        Digamos, o Juan Díaz está interessado em preencher os espaços em que não sabemos o que aconteceu com o Corto. Hugo Pratt desenhou Corto Maltese de um modo um pouco aleatório. Há uma cronologia que pode ser resumida perfeitamente, mas ora ia para o futuro ora voltava para o passado. Todo este tempo é coerente mas há espaços em que não sabemos nada da personagem. O que gostaríamos de fazer é ir buscar estes anos e criar novas aventuras sem que a cronologia da personagem se ressinta. É o nosso desejo.

E vocês vão usar as personagens que já são conhecidas?
-        Vamos usar algumas vezes, mas não estamos obrigados a fazê-lo. A nossa intenção, como é evidente, é que surja uma nova criação, não fazermos um deja vu, algo já visto, mas termos em conta esse factor, porque o aficionado, o conhecedor de Corto Maltese terá algumas ideias em respeito à obra já publicada de Pratt. Temos que pensar que parte deste projecto está dirigido a novos leitores, não é necessário estar só a recorrer ao catálogo de personagens de Hugo Pratt a todo o momento. O interesse também é que hajam novas personagens diferentes, com prismas diferentes mas com um enfoque conjunto no Corto Maltese.

Temos dois autores espanhóis, a trabalhar para uma editora francesa, numa personagem criada por um italiano? Há dificuldades em todos este processo de criar novas histórias, do que as várias partes envolvidas entendem o que deve ser Corto Maltese?
-        Digamos que, em Corto Maltese, o próprio Hugo Pratt é italiano, viveu na Argentina e trabalhou para Inglaterra. Corto Maltese foi reenvidicado em França como sendo francês, os italianos entendem-no como seu. É uma mistura, é como a personagem, é um cidadão mundo. Nesse aspecto, pouco importa se a mãe de Corto é cigana, há toda uma mistura ligada à personagem. É verdade que os franceses o consideram seu, os italianos também através do seu autor. Tudo isto é respeitável. Temos que compreender e não esquecer o que foi feito com ele, não precisamos de ir buscar uma nacionalidade para uma personagem que não tem nenhuma. Não vem ao caso. O projecto segue em frente feito por dois espanhóis, eu sou catalão, o Juan é de Madrid, a Casterman é a editora francesa, de Itália vem a Rizzoli, é uma mistura que é muito interessante.

Não é uma personagem tua, tens muita interferência editorial? O Juan tem de escrever dentro de certos parâmetros e tu tens de desenhar dentro de certos parâmetros?
-        Foi aquilo que comentei há pouco. Nas nossas condições pré-contratuais, não queríamos estar atados a uma exigência de fazer uma mera cópia. Consideramo-nos autores com as nossas próprias personalidades e os nossos próprios desejos. No que diz respeito à obra de Pratt, quisemos distanciar-nos como autores, e isto os editores aceitaram perfeitamente, não nos impuseram nenhum tipo de problema. Evidentemente, existem parâmetros que nós mesmos já os tínhamos visto, que teríamos que aplicar, são componentes, como a narração que costuma ser usada naquelas histórias é de um modo. É uma série de componentes que são evidentemente 'Pratteanos', no que diz respeito ao estilismo de personagens, aos espaços, ao modo como as personagens são apresentadas. Tudo isto é o que queríamos fazer, no meu caso volto a um estilo do início, em que Pratt era uma referência, foi durante muitos anos, e não me custou muito regressar. Voltei no modo de desenhar ao passado, ao início, buscar a soltura do traço, das manchas, que com o tempo havia deixado um pouco lado, porque tinha procurado por outros caminhos, mais sofisticados talvez, outros tipos de história, como Dieter Lumpen, que cada vez ficaram mais intimistas, com um outro tipo de roteiro.

Eu li a tua segunda história de Dieter Lumpen, que foi publicada em português na série brasileira Graphic Novel. Quanto de Dieter Lumpen estás a usar para fazer Corto Maltese?
-        Penso que, quem conhece a minha obra, quem conhece Dieter Lumpen vai identificar muito dele, muito mais do que eu fiz posteriormente. Em Dieter Lumpen estão muitos dos elementos que creio que tem a ver com uma BD de aventuras, e reflectiu-se em Corto Maltese. Penso que não me deixa muito longe deste espírito 'Pratteano' que foi uma grande influência em mim, evidentemente. Não és o primeiro a dizer-me, tive muitas pessoas especializadas que comentaram isso, é evidente. São personagens parecidos, cidadãos do mundo, é como se fosse o sobrinho pobre de Corto Maltese, o Dieter Lumpen é um pouco isso. Vão haver muitos comentários.

A influência de Pratt está a regressar a casa, pode-se dizer?
-        Sim, sim, a influência de Pratt está de volta. Para mim é um regresso à Aventura, com maiúsculas, porque é verdade. É super-emocionante, é um livro, que é evidente para o leitor, que vai ver que não é um livro de entrega autorial. Tanto eu como o Juan sentimos a aura de Pratt, gostamos muitíssimo. O que se vê nas páginas do álbum é o nosso amor pela obra de Pratt.

Vens à Comicon aqui em Portugal, onde Corto Maltese é uma personagem muito popular entre as gerações mais velhas. Queres sossegar os leitores antigos ao mesmo tempo que podes ganhar novos leitores? Queres ficar conhecido como o novo Hugo Pratt em Portugal?
-        Isso deixo-o aos leitores. Penso que a expectativa é esta. Estamos conscientes que Corto Maltese tem uma legião enorme de leitores que a ligação com eles está feita para continuar com ele. Penso que há matizes diferentes, tipos diferentes de leitor, não há leitor tão exigente que não queira saber de nada do regresso da personagem. Há aquele leitor que está interessado a voltar a ler, a ver o Corto mover-se em novas aventuras, porque tem uma recordação intensa da personagem, há o novo leitor que está entusiasmado porque este é um novo projecto meu com Juan Díaz Canales, e há outro leitor que desconhece Corto Maltese e que nunca o leu, e isto vai motivá-lo para ir à procura do Corto Maltese original. Há uma amálgama de emoções e de paixões neste projecto. Vivemo-lo todos. Penso que é um ritmo intenso, não vais só vender um livro ao público e ver como corre, são muitas coisas que estão postas a li, e digo-te que se não tivéssemos feito isto com grande amor pela obra não poderíamos ter ido em frente. Foi um projecto difícil de chegar ao final, sobretudo mais ainda porque é um projecto que custou muito, com muitas edições publicadas em três países ao mesmo tempo. Isto implica uma série de problemas logísticos bastante importantes.

Quando vieres a Portugal apresentar o teu livro, vais trazer algum material novo de Corto Maltese para mostrar aos fãs portugueses?
-        É difícil isso, porque este primeiro livro de Corto Maltese está complicado. Vou tentar fazer alguma coisa, porque alguma arte agora está a ir de um lado para o outro, o museu Hergé está a fazer uma exposição e tudo isso tem que ser estudado e valorizado. Gostava de trazer comigo algumas páginas, claro. São páginas que também estão valorizados e têm que ser tratadas com algum cuidado. Mas, sim, gostaria de ir a Portugal com alguma coisinha. Temos que ver se dá para fazer um acordo com a organização da Comicon, do festival.

Eu conhecia-te do Dieter Lumpen, mas nos últimos anos não há muito material teu que tenha chegado a Portugal, só quem compra os livros franceses.
-        Tem sido um problema. Penso que chegou a Portugal quando fiz o Dieter Lumpen, quando eu estava na Norma. Também chegou quando estive na Glénat, havia o público de Âromm, parece-me, mas toda a etapa que fiz na Bélgica e França nunca foi editada em português. São histórias mais complexas, os editores não arriscam em comprar os direitos de autor. Nem é uma área onde mostrei algum interesse, não conheço o mercado português e não tenho muitos contactos com editoras portuguesas. Acho que há uma editora, se não me engano, Axa, é isso?

Asa. Que substituiu a Meribérica para publicar material francês.
-        Com Esta editora ainda tive algum contacto, mas nunca tive muito contacto com as editoras portuguesas.

Foi difícil a adaptação do mercado editorial espanhol para o mercado editorial francês?
-        Digamos que o mercado francês mudou. No princípio, não estavam tão receptivos a autores estrangeiros. Era muito mais difícil. Aproximei-me de França para levar Lumpen directamente, queria tratar directamente com as editoras francesas. Custou-nos muito, a mim e ao Jorge, adaptarmo-nos, não pela qualidade do nosso trabalho, mas porque não estávamos acostumados ao trato com os autores. Isto já evoluiu e agora estão mais abertas, desde que tenhas qualidade, com uns passos simples consegues publicar em França. O que se passa é que antes haviam mais condicionamentos, tinhas que levar um produto que estava mais dentro do que era dominante, a linha clara, um tema histórico, com um estilo muito limpo. Isto foi mudando, agora já podes entrar no mercado francês com um estilo totalmente de autor, criativo, pessoal. Se fores bom, não vais ter problemas para seres publicado lá. Agora não há nenhum tipo de adaptação, são publicadas obras que até têm que ver com uma temática concretamente espanhola e publicam-na na mesma. Antes tinhas que fazer um tema muito internacional, algo que pudessem publicar em todo o lado, ou então algo que tratasse de uma história de França ou problemas franceses.

Quando foste para França, deixaste de trabalhar com o Jorge Zentner para trabalhares com o Denis Lapière. Como foi a mudança de autor para fazeres os cenários?
-        Bem, com o Jorge foi, digamos, fomos evoluindo a pouco e pouco, e com o Denis Lapière, foi uma mudança radical. Trabalhava com o Jorge de um modo muito mais em conjunto, discutíamos as histórias antes de as fazermos. Tínhamos uma ligação mais próxima nesse aspecto. Com Denis Lapière e outros argumentistas que vieram depois, sempre foi com um formato mais profissional. Já conheciam o meu trabalho, de referência, sabiam com quem iam publicar, davam-me um guião completo, e pouco mais havia a discutir, e deixavam nas mainhas mãos a produção da história. Esse aspecto mais aventureiro que tinha com o Jorge desapareceu. Por outro lado, também ganhei com os argumentistas com que trabalhei, em formato álbum francês, conheciam muito melhor os interesses do público francês, mais do que nós, e no aspecto comercial sabiam muito mais construir as histórias com base nisso.

Lapière é o novo guionista do Michel Vaillant, que foi publicado em Portugal. Como trabalhaste com ele, não estiveste na lista para seres o novo artista de Michel Vaillant?
-        Não, esta personagem nunca me interessou muito. Gosto muito pouco de desenhar máquinas e carros. É um trabalho muito diferente do que as figuras, é um trabalho para especialista.

Muitos artistas espanhóis começaram a trabalhar nos anos 80 e 90 para o mercado americano. Nunca tiveste interesse em trabalhar lá?
-        O mercado americano, dos superheróis? Sempre o encarei como uma coisa que está muito longe, porque não sei inglês. Parecia-me um obstáculo enorme. Na época de Dieter Lumpen tínhamos sido publicados na Heavy Metal, mas foi só muitos anos depois que me dei conta que os Estados Unidos que alguns desenhadores e alguns profissionais tinham-me em boa conta. Dá-me muita satisfação mas a língua impedia-me. Foi mais tarde por indicação de um agente que os contactei e isso facilitou fazer Batman: Black & White. Poderia ter gostado mais noutro tempo mas agora o carro já passou. Se bem que, a porta sempre esteve aberta para estar com eles porque um dos factores de que gosto mais no mercado americano que no francês, é que a acção e as sombras acabam por funcionar muito bem. Gosto disso. No mercado francês trabalham mais com as cores, o negro permite-me trabalhar mais com arte-final. No mercado americano, nos superheróis sempre gostei mais de DC do que de Marvel. É um comic onde podes trabalhar mais com histórias tipo policial, e não os de capa e uniforme que andam por aí, que não os sigo.

Vi que Dieter Lumpen vai ser publicado em inglês pela IDW, este ano.
-        Sim, vai ser publicado em inglês, espero que não demore muito. Foi um integral que foi feito o ano passado, foi distribuído e agora vai ser publicado lá. É a mesma editora que também está a publicar Corto Maltese nos Estados Unidos. Também vai publicar Dieter Lumpen. É emocionante que também seja publicado Dieter Lumpen.

Também é a mesma editora que publicou Torpedo. Isto permite seres conhecido por novos leitores. Assim, queres mandar uma mensagem para os leitores que te vão conhecer na Comi Con?
-        Gostaria de dizer que se puderem ir ao Porto, nunca lá estive e é uma oportunidade para vos cumprimentar. Mando-vos um forte abraço daqui e espero que tenhamos oportunidade para falar um pouco mais. Somos vizinhos e estou entusiasmado por estar aí em pessoa.


Rubén Pellejero e Juan Díaz Canales vão estar presentes na Comic Con Portugal, no Porto. Não se esqueçam de comprar o novo Corto Maltese e tirar os obras antigas destes autores da prateleira.


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