Esta é a transcrição completa de uma entrevista realizada ao autor espanhol Rubén Pellejero, em parceria pelo Leituras de BD e pela Cinemic Magazine, a video-revista online de cinema, comics e videojogos, também disponível no Meo Kanal 753444. A entrevista com Pellejero foi incluída no 44º episódio.
Rubén Pellejero em 2015. Foto de Selby May. |
Rubén Pellejero é o novo artista do relançado Corto Maltese. Nasceu em Badalona, Espanha, a 20 de Dezembro de 1952, e é conhecido por ter co-criado as séries "Monsieur Griffaton" e "Historias en FM" para a revista Cimoc e "Dieter Lumpen" para a revista Cairo, nos anos 80, e os álbuns El Silencio de Malka e Aromm, nos anos 90, com o escritor argentino Jorge Zentner. Mais recentemente, trabalhou com Denis Lapière em álbuns como Un Peu de Fumée Bleue… e L'Impertinence d'un Été. O seu primeiro álbum de Corto Maltese, escrito por Juan Díaz Canales, autor de Blacksad, chama-se "Sous le Soleil de Minuit" e foi recentemente lançado em francês pela Casterman.
Podemos começar a falar do Corto Maltese, a grande novidade
que estás a fazer. Pelo que eu vi da arte promocional, consegues imitar o
estilo do Hugo Pratt mas os cenários são completamente diferentes. É por causa
dos roteiros do Juan Díaz Canales ou é o teu próprio estilo que se vai
sobrepor?
-
É preciso ter uma coisa em conta. Não é uma
cópia do Corto Maltese. Em nenhum momento se pretendeu fazer uma cópia exacta
de Corto Maltese. Aliás, penso que seria um erro, tudo o que fosse uma cópia de
Hugo Pratt seria sempre inferior ao que ele fez. Entendes? E o único sentido de
continuar Corto Maltese é respeitando a essência das personagens e das
histórias. Corto Maltese está encerrado com Hugo Pratt. A continuição tem que
seguir dentro de outro caminho, tentar reflectir o ambiente, sobretudo a
atmosfera, digamos, das histórias de corto Maltese e trazendo algo novo. Nós
adoptarmos este projecto baseia-se em que nos respeite como autores, porque
também temos as nossas próprias decisões para o projeto. Uma vulgar cópia seria
um trabalho anódino, sem nenhum tipo de interesse. Teríamos que transportar a
personalidade do autor. De resto, este foi a única maneira de nos interessarmos
por este projeto. Por um outro lado, respeitar Pratt, que não veria feita justiça
se emulado de um modo sistemático, mas sim, o que queremos conseguir é dar ao
leitor à atmosfera 'Pratteana' para que as personagens possam participar em
aventuras, tendo em conta que a hora de Corto já está feita, acabou quando Hugo
Pratt faleceu. Era este aspecto que queria clarificar. Em nenhum momento
quisemos fazer uma cópia.
Vocês preocuparam-se com a cronologia onde vão colocar as
vossas histórias, comparadas com as histórias de Pratt?
-
Digamos, o Juan Díaz está interessado em
preencher os espaços em que não sabemos o que aconteceu com o Corto. Hugo Pratt
desenhou Corto Maltese de um modo um pouco aleatório. Há uma cronologia que
pode ser resumida perfeitamente, mas ora ia para o futuro ora voltava para o
passado. Todo este tempo é coerente mas há espaços em que não sabemos nada da
personagem. O que gostaríamos de fazer é ir buscar estes anos e criar novas
aventuras sem que a cronologia da personagem se ressinta. É o nosso desejo.
E vocês vão usar as personagens que já são conhecidas?
-
Vamos usar algumas vezes, mas não estamos
obrigados a fazê-lo. A nossa intenção, como é evidente, é que surja uma nova
criação, não fazermos um deja vu, algo já visto, mas termos em conta esse
factor, porque o aficionado, o conhecedor de Corto Maltese terá algumas ideias
em respeito à obra já publicada de Pratt. Temos que pensar que parte deste
projecto está dirigido a novos leitores, não é necessário estar só a recorrer
ao catálogo de personagens de Hugo Pratt a todo o momento. O interesse também é
que hajam novas personagens diferentes, com prismas diferentes mas com um
enfoque conjunto no Corto Maltese.
Temos dois autores espanhóis, a trabalhar para uma editora
francesa, numa personagem criada por um italiano? Há dificuldades em todos este
processo de criar novas histórias, do que as várias partes envolvidas entendem
o que deve ser Corto Maltese?
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Digamos que, em Corto Maltese, o próprio Hugo
Pratt é italiano, viveu na Argentina e trabalhou para Inglaterra. Corto Maltese
foi reenvidicado em França como sendo francês, os italianos entendem-no como
seu. É uma mistura, é como a personagem, é um cidadão mundo. Nesse aspecto,
pouco importa se a mãe de Corto é cigana, há toda uma mistura ligada à
personagem. É verdade que os franceses o consideram seu, os italianos também através
do seu autor. Tudo isto é respeitável. Temos que compreender e não esquecer o
que foi feito com ele, não precisamos de ir buscar uma nacionalidade para uma
personagem que não tem nenhuma. Não vem ao caso. O projecto segue em frente
feito por dois espanhóis, eu sou catalão, o Juan é de Madrid, a Casterman é a
editora francesa, de Itália vem a Rizzoli, é uma mistura que é muito
interessante.
Não é uma personagem tua, tens muita interferência
editorial? O Juan tem de escrever dentro de certos parâmetros e tu tens de
desenhar dentro de certos parâmetros?
-
Foi aquilo que comentei há pouco. Nas nossas
condições pré-contratuais, não queríamos estar atados a uma exigência de fazer
uma mera cópia. Consideramo-nos autores com as nossas próprias personalidades e
os nossos próprios desejos. No que diz respeito à obra de Pratt, quisemos
distanciar-nos como autores, e isto os editores aceitaram perfeitamente, não
nos impuseram nenhum tipo de problema. Evidentemente, existem parâmetros que
nós mesmos já os tínhamos visto, que teríamos que aplicar, são componentes,
como a narração que costuma ser usada naquelas histórias é de um modo. É uma
série de componentes que são evidentemente 'Pratteanos', no que diz respeito ao
estilismo de personagens, aos espaços, ao modo como as personagens são
apresentadas. Tudo isto é o que queríamos fazer, no meu caso volto a um estilo
do início, em que Pratt era uma referência, foi durante muitos anos, e não me
custou muito regressar. Voltei no modo de desenhar ao passado, ao início, buscar
a soltura do traço, das manchas, que com o tempo havia deixado um pouco lado,
porque tinha procurado por outros caminhos, mais sofisticados talvez, outros
tipos de história, como Dieter Lumpen, que cada vez ficaram mais intimistas,
com um outro tipo de roteiro.
Eu li a tua segunda história de Dieter Lumpen, que foi
publicada em português na série brasileira Graphic Novel. Quanto de Dieter
Lumpen estás a usar para fazer Corto Maltese?
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Penso que, quem conhece a minha obra, quem
conhece Dieter Lumpen vai identificar muito dele, muito mais do que eu fiz
posteriormente. Em Dieter Lumpen estão muitos dos elementos que creio que tem a
ver com uma BD de aventuras, e reflectiu-se em Corto Maltese. Penso que não me
deixa muito longe deste espírito 'Pratteano' que foi uma grande influência em
mim, evidentemente. Não és o primeiro a dizer-me, tive muitas pessoas
especializadas que comentaram isso, é evidente. São personagens parecidos,
cidadãos do mundo, é como se fosse o sobrinho pobre de Corto Maltese, o Dieter
Lumpen é um pouco isso. Vão haver muitos comentários.
A influência de Pratt está a regressar a casa, pode-se
dizer?
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Sim, sim, a influência de Pratt está de volta.
Para mim é um regresso à Aventura, com maiúsculas, porque é verdade. É
super-emocionante, é um livro, que é evidente para o leitor, que vai ver que
não é um livro de entrega autorial. Tanto eu como o Juan sentimos a aura de
Pratt, gostamos muitíssimo. O que se vê nas páginas do álbum é o nosso amor
pela obra de Pratt.
Vens à Comicon aqui em Portugal, onde Corto Maltese é uma
personagem muito popular entre as gerações mais velhas. Queres sossegar os
leitores antigos ao mesmo tempo que podes ganhar novos leitores? Queres ficar
conhecido como o novo Hugo Pratt em Portugal?
-
Isso deixo-o aos leitores. Penso que a
expectativa é esta. Estamos conscientes que Corto Maltese tem uma legião enorme
de leitores que a ligação com eles está feita para continuar com ele. Penso que
há matizes diferentes, tipos diferentes de leitor, não há leitor tão exigente
que não queira saber de nada do regresso da personagem. Há aquele leitor que
está interessado a voltar a ler, a ver o Corto mover-se em novas aventuras,
porque tem uma recordação intensa da personagem, há o novo leitor que está
entusiasmado porque este é um novo projecto meu com Juan Díaz Canales, e há
outro leitor que desconhece Corto Maltese e que nunca o leu, e isto vai
motivá-lo para ir à procura do Corto Maltese original. Há uma amálgama de
emoções e de paixões neste projecto. Vivemo-lo todos. Penso que é um ritmo
intenso, não vais só vender um livro ao público e ver como corre, são muitas
coisas que estão postas a li, e digo-te que se não tivéssemos feito isto com
grande amor pela obra não poderíamos ter ido em frente. Foi um projecto difícil
de chegar ao final, sobretudo mais ainda porque é um projecto que custou muito,
com muitas edições publicadas em três países ao mesmo tempo. Isto implica uma
série de problemas logísticos bastante importantes.
-
É difícil isso, porque este primeiro livro de
Corto Maltese está complicado. Vou tentar fazer alguma coisa, porque alguma
arte agora está a ir de um lado para o outro, o museu Hergé está a fazer uma
exposição e tudo isso tem que ser estudado e valorizado. Gostava de trazer
comigo algumas páginas, claro. São páginas que também estão valorizados e têm
que ser tratadas com algum cuidado. Mas, sim, gostaria de ir a Portugal com
alguma coisinha. Temos que ver se dá para fazer um acordo com a organização da
Comicon, do festival.
Eu conhecia-te do Dieter Lumpen, mas nos últimos anos não há
muito material teu que tenha chegado a Portugal, só quem compra os livros
franceses.
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Tem sido um problema. Penso que chegou a
Portugal quando fiz o Dieter Lumpen, quando eu estava na Norma. Também chegou
quando estive na Glénat, havia o público de Âromm, parece-me, mas toda a etapa
que fiz na Bélgica e França nunca foi editada em português. São histórias mais
complexas, os editores não arriscam em comprar os direitos de autor. Nem é uma
área onde mostrei algum interesse, não conheço o mercado português e não tenho
muitos contactos com editoras portuguesas. Acho que há uma editora, se não me
engano, Axa, é isso?
Asa. Que substituiu a Meribérica para publicar material
francês.
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Com Esta editora ainda tive algum contacto, mas
nunca tive muito contacto com as editoras portuguesas.
-
Digamos que o mercado francês mudou. No
princípio, não estavam tão receptivos a autores estrangeiros. Era muito mais
difícil. Aproximei-me de França para levar Lumpen directamente, queria tratar
directamente com as editoras francesas. Custou-nos muito, a mim e ao Jorge,
adaptarmo-nos, não pela qualidade do nosso trabalho, mas porque não estávamos
acostumados ao trato com os autores. Isto já evoluiu e agora estão mais
abertas, desde que tenhas qualidade, com uns passos simples consegues publicar
em França. O que se passa é que antes haviam mais condicionamentos, tinhas que
levar um produto que estava mais dentro do que era dominante, a linha clara, um
tema histórico, com um estilo muito limpo. Isto foi mudando, agora já podes
entrar no mercado francês com um estilo totalmente de autor, criativo, pessoal.
Se fores bom, não vais ter problemas para seres publicado lá. Agora não há nenhum
tipo de adaptação, são publicadas obras que até têm que ver com uma temática
concretamente espanhola e publicam-na na mesma. Antes tinhas que fazer um tema
muito internacional, algo que pudessem publicar em todo o lado, ou então algo
que tratasse de uma história de França ou problemas franceses.
Quando foste para França, deixaste de trabalhar com o Jorge
Zentner para trabalhares com o Denis Lapière. Como foi a mudança de autor para
fazeres os cenários?
-
Bem, com o Jorge foi, digamos, fomos evoluindo a
pouco e pouco, e com o Denis Lapière, foi uma mudança radical. Trabalhava com o
Jorge de um modo muito mais em conjunto, discutíamos as histórias antes de as
fazermos. Tínhamos uma ligação mais próxima nesse aspecto. Com Denis Lapière e
outros argumentistas que vieram depois, sempre foi com um formato mais
profissional. Já conheciam o meu trabalho, de referência, sabiam com quem iam
publicar, davam-me um guião completo, e pouco mais havia a discutir, e deixavam
nas mainhas mãos a produção da história. Esse aspecto mais aventureiro que
tinha com o Jorge desapareceu. Por outro lado, também ganhei com os
argumentistas com que trabalhei, em formato álbum francês, conheciam muito
melhor os interesses do público francês, mais do que nós, e no aspecto
comercial sabiam muito mais construir as histórias com base nisso.
Lapière é o novo guionista do Michel Vaillant, que foi
publicado em Portugal. Como trabalhaste com ele, não estiveste na lista para
seres o novo artista de Michel Vaillant?
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Não, esta personagem nunca me interessou muito.
Gosto muito pouco de desenhar máquinas e carros. É um trabalho muito diferente
do que as figuras, é um trabalho para especialista.
Muitos artistas espanhóis começaram a trabalhar nos anos 80
e 90 para o mercado americano. Nunca tiveste interesse em trabalhar lá?
-
O mercado americano, dos superheróis? Sempre o
encarei como uma coisa que está muito longe, porque não sei inglês. Parecia-me
um obstáculo enorme. Na época de Dieter Lumpen tínhamos sido publicados na
Heavy Metal, mas foi só muitos anos depois que me dei conta que os Estados
Unidos que alguns desenhadores e alguns profissionais tinham-me em boa conta.
Dá-me muita satisfação mas a língua impedia-me. Foi mais tarde por indicação de
um agente que os contactei e isso facilitou fazer Batman: Black & White.
Poderia ter gostado mais noutro tempo mas agora o carro já passou. Se bem que,
a porta sempre esteve aberta para estar com eles porque um dos factores de que
gosto mais no mercado americano que no francês, é que a acção e as sombras acabam
por funcionar muito bem. Gosto disso. No mercado francês trabalham mais com as
cores, o negro permite-me trabalhar mais com arte-final. No mercado americano,
nos superheróis sempre gostei mais de DC do que de Marvel. É um comic onde
podes trabalhar mais com histórias tipo policial, e não os de capa e uniforme
que andam por aí, que não os sigo.
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Sim, vai ser publicado em inglês, espero que não
demore muito. Foi um integral que foi feito o ano passado, foi distribuído e
agora vai ser publicado lá. É a mesma editora que também está a publicar Corto
Maltese nos Estados Unidos. Também vai publicar Dieter Lumpen. É emocionante
que também seja publicado Dieter Lumpen.
Também é a mesma editora que publicou Torpedo. Isto permite
seres conhecido por novos leitores. Assim, queres mandar uma mensagem para os
leitores que te vão conhecer na Comi Con?
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Gostaria de dizer que se puderem ir ao Porto,
nunca lá estive e é uma oportunidade para vos cumprimentar. Mando-vos um forte
abraço daqui e espero que tenhamos oportunidade para falar um pouco mais. Somos
vizinhos e estou entusiasmado por estar aí em pessoa.
Rubén Pellejero e Juan Díaz Canales vão estar presentes na Comic Con Portugal, no Porto. Não se esqueçam de comprar o novo Corto Maltese e tirar os obras antigas destes autores da prateleira.
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