Hoje, volto ao tema da banda desenhada japonesa, com Akira, por Katsuhiro Otomo. Akira é uma revolução, em todos os aspectos, tanto no teor, como no impacto sobre as ideias, e as formas, com que se constroem mundos, em ficção científica. Quem olhar com atenção vê, não só a metrópole - Neo Tokio - onde se desenrola a acção, ou as suas personagens, mas o próprio autor que se vai redefinindo e adaptando à obra, naquilo que é, indubitavelmente, o processo de maturação da pessoa, enquanto escritor, criador.
Mas, voltemos ao início. Katsuhiro Otomo nasceu em Abril de 1954, durante a sua adolescência conhece o autor Shotaro Ishinomori, mangaka (artista de banda desenhada japonesa), mais conhecido por ter criado a primeira equipa de super-heróis japoneses: Cyborg 009. Talvez que a influência o tenha levado a tomar a decisão de, após completa a escola e se deslocar para Tóquio, se tornar, ele mesmo, artista de banda desenhada.
O seu trabalho inicial é composto pela adaptação à arte de vários contos curtos que mais tarde viriam a ser compilados em formato de livro. Com o reconhecimento do seu trabalho veio, igualmente, a necessidade de se aventurar pelo formato - a saga - longa (formato pelo qual a banda desenhada japonesa muito se caracteriza), mas não só, igualmente pela temática da ficção científica. Em 1983, devido à sua obra Domu, uma novela gráfica de 230 páginas baseada no conflito entre dois indivíduos possuidores de poderes psíquicos letais, viria mesmo a ser-lhe reconhecido o mérito aquando da atribuição do prémio da Nihon SF Taishō Award. Não sem controvérsia, afinal de contas, mas por abrir a excepção, visto que seria a primeira vez que a banda desenhada era premiada com tal galardão.
Assim, podemos compreender melhor as circunstâncias que dão origem à obra, Akira. Akira é um projecto gigantesco, composto por aproximadamente 1800 páginas e editado, originalmente, pela casa de edição Kodansha Ltd. O seu público alvo era a população adolescente, um acto que à altura, no contexto em causa, era uma aposta arriscada. A verdade é que, com grande esforço, a primeira edição publicada na revista Shūkan Yangu Magajin, bimensal (de 1982 a 1990), foi uma aposta ganha. Em 1989 seriam contabilizadas três milhões de cópias da saga.
A primeira reedição para a língua inglesa chegou até nós pelo cunho da Epic Comics, associada à Marvel Comics. Para quem não sabe, o processo de ocidentalização de uma obra assim, é um processo complicado. Tanto a balonagem, como a disposição dos quadradinhos, teve de ser toda revista (no Japão a leitura é feita na vertical e a sequência de animação dá-se da direita para a esquerda). Para além do mais, a obra foi toda colorida. Em Portugal também foi feita uma reedição da obra, pela Meribérica, alguns de vós estarão provavelmente recordados. Foi publicada a colecção completa, 19 volumes; infelizmente da obra subsequente de Katsuhiro Otomo, Mother Sarah, foram publicados apenas 3 volumes. E, provavelmente, esta última obra não foi terminada à conta dos preços punitivos, pois que, em 1996 um livro da colecção Akira custava o equivalente a 18€ «é fazer as contas!» só os volumes publicados, saiam do bolso do consumidor pela módica quantia (perdoem-me a ironia) de 342€.
Akira é uma visão pós-apocalíptica do mundo, uma versão da vida pós III grande guerra mundial. Algures, um novo tipo de bomba explode, na área metropolitana de Tóquio, deixando um cenário de devastação. A acção desenrola-se num tempo muito após estes eventos, numa nova cidade renascida - a célebre Neo Tokio de Katsuhiro Otomo - ela ergue-se ainda mais alta e cosmopolita, e as suas gentes vivem uma aparente harmonia. Aqui, é-nos apresentada a vida de um grupo de jovens motards, fascinados pela velocidade e pela rebeldia dos seus actos, numa quase que referência a filmes como Easy Rider, influência confessa pela parte que toca ao autor.
Depois, é um universo altamente militarizado, consequência provável da guerra, e, para além de ser militarizado, é contrabalançado por outro género de forças, forças de resistência, mais ou menos sub-reptícias. Assim, do ambiente monumental que é o futuro, desenrola-se uma história que é, antes de mais, protagonizada por dois adolescentes: Kaneda e Tetsuo. É, pois, acerca de uma amizade, Kaneda é o extrovertido, líder nato, uma força constante de rebeldia e coragem, e Tetsuo que, na sombra do seu amigo, vê-se na situação improvável de desenvolver poderes psíquicos destrutivos, paranormais, pelo que, do início ao fim, a tónica é posta na ascensão de Tetsuo a esse dado poder absoluto, descontrolado, influenciado pela moratória própria da adolescência, ou acerca do conflito entre o "fazer o bem" ou o "fazer o mal", uma das questões essenciais que temos que ir tentando resolver ao longo da vida.
Akira é, para todos os efeitos, a caixa de Pandora, resultado de uma experiência militar num grupo de crianças para o desenvolvimento de poderes psíquicos, e embora não se saiba ao certo, crê-se estar na origem da devastação de Tóquio. É deveras surpreendente a forma como o autor conjuga uma quase visão metafísica, bem própria do universo, pois que, Akira «é aquele que se encontra além do fluxo, stream» uma alusão, quem sabe, à dimensão espácio-temporal. Todos os outros personagens têm que se debater com os seus problemas, com as suas ilusões.
É também um estudo de personagens, personalidades. Como aspecto menos positivo, poderia argumentar que, numa obra tão extensa, a complexidade do ser humano poderia ter sido melhor representada: cada personagem, é quase como uma pequena ilha. Por outro lado, da cadência de acção, do desenrolar da imaginação do autor, quase que torna inverosímil a forma como as personagens se vão constantemente encontrando durante a história, ou a forma como, apesar de tudo, de todas as explosões e devastações, dificilmente morrem: reencontram-se.
O desenho, é um desenho completo. Consegue captar a essência de que é feito o movimento, joga constantemente com diferentes ângulos que são os da câmara do ilustrador, está perfeitamente à vontade aquando explora formas alternativas, recorre a efeitos de sombra ou de luz com mestria. Depois, os cenários são complexos e envolventes, uma característica necessária para este estilo de narrativa. As feições, as expressões, são facilmente reconhecíveis, permitindo ao leitor focar a atenção no essencial: que é o fluir da obra.
Já no filme, nota-se que existe um maior esforço de consistência narrativa, consequência de uma visão mais apurada e construída do universo Akira. Sim, para terminar, deixo aqui uma nota acerca do filme. Realizado e dirigido pelo autor.
Eu cá... Tenho a breve recordação de o ter assistido numa sala de cinema, na sequência de um qualquer ciclo dedicado à animação japonesa. Na impossibilidade, ou falta de vontade, de ler a obra, recomendo o seu visionamento. Nele se pode ver, eu vejo, a influência para outras obras que me surpreenderam, de uma maneira ou de outra: o Ghost in the Shell, por exemplo, baseado na manga, por Masamune Shirow. É de cortar a respiração a forma como se conjugam os cenários, de uma beleza própria, o movimento complexo, ou os efeitos sonoros que nos conseguem ir inquietando à medida que nos aproximamos do clímax narrativo. A solução de clímax não é, na minha opinião, a mais adequada, mas isso é de mim que, influenciado pela banda desenhada, a julguei aquém das inúmeras possibilidades disponíveis, mesmo dentro dos constrangimentos próprios de tempo que um filme tem para resolver.
Sem dúvida, um marco importante na história da banda desenhada, assim como da animação, a ver, ou rever!