sábado, 15 de junho de 2024

1629 Vol.1 - O Boticário do Diabo
... ou a história apavorante dos náufragos do Jakarta


 "- Para nós, o mar cheira a puta velha, e o nosso barco tresanda a uma mistura de merda e vómito."

Para início de viagem, desta viagem, isto coloca logo tudo no devido lugar.

Conheço mais ou menos bem a história do Batávia (traduzido para Jakarta) devido a uma investigação que fiz aos primórdios da Austrália anos atrás. Embora não vá falar dos eventos históricos que me chamaram à atenção na altura, para não fazer spoiler à conclusão da narrativa do final do 2º volume.

Este horrendo drama histórico é base para um excelente prefácio do próprio autor, Xavier Dorison, que traça aí uma ligação ao livro do psicólogo norte-americano Philip Zimbardo: The Lucifer Effect: Understanding How Good People Turn Evil. Ou seja, como uma pessoa boa ou perfeitamente normal é capaz das maiores atrocidades se as condições espaço-sociais se propiciarem a isso. Aconselho a leitura do prefácio, não é comprido nem chato e dá logo uma luz do que vamos estar prestes a testemunhar: a extinção da alma.

De notar também que a narrativa de Dorison é uma adaptação da história verídica dos acontecimentos descritos nesta viagem, mas foram incluídos também elementos ficcionais para melhorarem a transposição para a banda desenhada, e colar melhor a atenção do leitor ao livro, tudo isto sem deturpar a parte real da tragédia.

Depois desta primeira introdução, vou falar da minha relação com histórias de piratas ou ambientadas em aventuras marítimas do séc. XV ao séc. XVII. Nunca fui de predisposição inicial para pegar nelas, sejam literatura ou BD, ainda me lembro que levei uns tabefes ligeiros para ler a Ilha do Tesouro! Mas depois de começar, e se a história for boa, já não largo mais. É assim comigo também nos Westerns. Manias! 🤷🏻‍♂️
Comecei em BD neste tipo de registo há muitos anos (muitos) com os dois livros da Íbis da série Howard Flynn e lembro-me que gostei, embora não fosse o meu género preferido.

Desde essa altura já li muitas aventuras do género, e já bocejei muitas vezes também, portanto aquela parte do been there, done that costuma andar por aqui algumas vezes, e estava com medo que me acontecesse aqui sobretudo depois de Dorison ter escrito também o argumento do Long John Silver (editado cá pela ASA) há poucos anos. Mas não aconteceu. 🙂


 Tenho uma boa relação com a obra de Xavier Dorison. Começou há muitos anos com o O Terceiro Testamento (Witloof) que adorei, e mais recentemente com o O Castelo dos Animais (Arte de Autor) e Undertaker (Ala dos Livros). Gosto da estrutura, força e fluidez que costuma imprimir nas suas narrativas e esta adaptação não foge a esta trindade de predicados que um argumento deve ter.

Não é fácil escrever uma história num enredo já muito visto, ambientado na altura do comércio marítimo e pirataria, tráfico de riquezas, motins e donzelas em perigo no mar, violência, fome e sede a bordo, enfim…  para sobressair tem de ser muito bem contado. Penso que Dorison o conseguiu. Não é nada de inovador, já foi contado muitas vezes, mas a leitura deste livro torna-se bastante interessante e o leitor não sai defraudado.

As primeiras páginas vão definir o clima. A escolha dos responsáveis do navio, duas pessoas que se odiavam e depois uma terceira desconhecida, mas que podemos pensar logo que não é flor que se cheire. Logo de seguida é-nos apresentada Lucrécia Hans que ao longo do livro é por vezes a narradora que faz a cola entre várias cenas de acção. E é uma bonita jovem aristocrata obrigada a ter de embarcar para ir ter com o seu marido a Java.

Com o passar das páginas as personagens vão sendo desenhadas e aprofundadas aos poucos, num enredo sombrio, e numa narrativa que se vai tornando sufocante e violenta em crescendo. Aquele navio foi montado para “explodir” pela Companhia Holandesa das Índias Orientais. Com uma carga enorme de ouro e jóias e uma tripulação do crème de la crème dos párias que tinham sido rejeitados por outros barcos não havia como falhar! Como condimento temos o Comandante Pelsaert, um disciplinador inflexível a quem é dado o comando do Jakarta para chegar a Java em 120 dias, ou seja, muito curto. Do Imediato, o nosso amigo Boticário, não falo, é para vocês descobrirem a ler o livro. E por tudo isto, um motim está sempre na ordem do dia! 🤷🏻‍♂️

Este livro aflora também problemas da época, como a posição social das mulheres, religião em algumas das suas vertentes (Luteranismo, Ateísmo, etc.) e o clima ditatorial que se vivia tanto dos Directores da Companhia em cima dos Oficiais, como dos Oficiais em cima dos tripulantes. O contacto e comércio com tribos africanas também é aflorado, na Serra Leoa, com alguns problemas inerentes à diferença de cultura, e visto que neste caso o Jakarta não era um navio negreiro, surgiam outro tipo de problemas.

Deixo o resto para vocês descobrirem 😎

Para ilustrar e dar vida ao argumento de Dorison foi escolhido Timothée Montaigne, um desenhador que já havia trabalhado com Dorison em Long John Silver, Castelo dos Animais e Terceiro Testamento.

E sim, Montaigne dá vida ao argumento e dá lustro a esta história. Ele adequa o seu estilo de modo a dar o tom a esta história negra. Consegue ser sufocante no estreitamento visual de algumas vinhetas, para depois explodir em enormes painéis de página dupla. Aquela sensação de claustrofobia da vida a bordo, misturada com caras de fisionomia paranóica está bem marcada em muitas páginas, sobretudo quando evocam a brutalidade a bordo.

Os detalhes que Montaigne aplica neste livro são maravilhosos, sobretudo quando estamos a falar no navio Jakarta, tanto nos interiores como exteriores deste barco, e os detalhes não atrapalham minimamente a fluidez da narrativa da sua arte. É dinâmico! Por isso uma segunda leitura é necessária, para podermos colocar os olhos nos detalhes e pormenores, parar e apreciar.

Clara Tessier deu cor à arte de Montaigne. A sua palete de cor muda drasticamente quando estamos no interior do navio, um ambiente escuro e deprimente, para os tons muito claros e luminosos (duh…  estamos no mar, néh?) no exterior, excepto tempestades… aí passamos novamente para os tons escuros e deprimentes 😅 A sua coloração da costa da Serra Leoa estava muito bonita. Gostei.

Falando do livro como objecto. Aqui não há dúvidas que estamos perante um excelente trabalho do editor/livreiro Mário Freitas e da editora Arte de Autor. Mário Freitas foi responsável pela paginação, tradução e excelente legendagem deste livro. Fez um excelente trabalho, aliás, um livro destes não mereceria outra coisa a não ser excelência, por quem edita e trabalha nele. Mas...  e a capa? Meu Deus, a capa! É linda com texturas para serem sentidas enquanto se manuseia este livro 💚

Agora falta-me saber quando vamos ter o segundo volume, visto que ainda não foi publicado em França.
O LBD recomenda a leitura deste livro.



 

1629 vol 1: O Boticário do Diabo
Autores: Xavier Dorison e Timothée Montaigne
Editora: Arte de Autor
Páginas: 136, a cores
Encadernação: capa dura
Dimensões: 235 x 310 mm
ISBN: 978-989-9094-36-9
PVP: 34,95€

 

Boas leituras


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