quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

A Palavra dos Outros: Uma breve história da identidade secreta – Parte I por Paulo Costa


Já tinha saudades dos textos do Paulo Costa...
E eis que hoje me surgiu mais um!
Paulo Costa vai fazer uma "breve" história das identidades secretas em seis partes (pelo menos), hoje ficamos com a primeira!

Fiquem com a história das identidades secretas!


Uma breve história da identidade secreta – Parte I

A identidade secreta, ou dupla identidade, é um conceito quase universal na banda desenhada. Embora seja anterior à criação do meio, a sua popularização deve muito ao sucesso das histórias de super-heróis criadas pela indústria americana de BD na década de 1930, na altura ainda jovem mas em rápida expansão. A identidade secreta, geralmente escondida sob uma máscara, nunca teve muito sucesso fora do mundo anglófono, mas a verdade é que a ideia só poderia mesmo ter nascido na cultura anglo-saxónica, e há razões para isso.

O super-herói tem origens ancestrais na mitologia, tal como a identidade secreta. O disfarce era recorrente, tomando como exemplos no Velho Testamento, Jacó a disfarçar-se como o seu irmão Esaú, recebendo do seu pai Isaac a herança do manto de chefe da tribo; Zeus a assumir a identidade do general Anfitrião de Tebas para ter relações sexuais com Alcmene, mulher deste, uma união da qual nasceu Héracles; Odin, no papel do barqueiro Harbard, a recusar transportar Thor entre as duas margens de um rio, acusando-o de ser um maltrapilho. Os disfarces eram, portanto, usados para enganar outras pessoas e não representavam problemas psicológicos de identidade. Para isso, é preciso avançar até ao século XIX.

A Grã-Bretanha emergiu das Guerras Napoleónicas como uma das primeiras superpotências, ajudando, em conjunto com a Revolução Industrial, a moldar um sentimento de superioridade da sociedade britânica (mais especificamente da inglesa) em relação a todos os outros povos do mundo. A frenologia, uma pseudociência que media a inteligência e a personalidade conforme o formato do crânio, gozava de grande popularidade no país durante a Era Vitoriana e era considerada eficaz. Havia também uma corrente filosófica que identificava os antepassados dos ingleses com as tribos perdidas de Israel, especialmente a tribo de Dã, exilada após a conquista do reino de Israel e Judá pelos assírios, pretendendo suportar a ideia de um povo “escolhido por Deus”. Estas ideias, mesmo depois de abandonadas a nível científico, iriam misturar-se com os conceitos de eugenia e do homem superior descrito por Nietzsche em “Assim Falou Zarathustra”. Mas a Era Vitoriana foi também a época de uma estranha lenda urbana.

Em 1837, duas jovens foram atacadas em Londres por uma criatura com garras, que fugiu saltando de uma só vez do chão por cima de um muro alto. Esta assustadora figura foi chamada Spring-Heeled Jack. A criatura continuou a ser vista durante vários anos e não apenas em Londres, até 1904. Vários detalhes foram acrescentados à lenda, incluindo um capacete, máscara ou face de demónio, olhos vermelhos de fogo, pele escamosa ou oleosa e a capacidade de expelir chamas azuis. Embora as autoridades tivessem um suspeito
(Henry Beresford, marquês de Waterford) no que acreditavam ser uma brincadeira de mau gosto, os criadores de ficção popular não deixaram escapar a oportunidade e começaram a escrever obras com Spring-Heeled Jack como personagem principal de penny dreadfuls (equivalente britânico das dime novels e pulps americanos), logo a partir de 1840. Uma história, “O Terror de Londres”, escrita por Alfred Burrage em 1878 e publicada em 48 partes no penny dreadful “The Boys Standard”, fazia de Spring-Heeled Jack o alter ego de um nobre que havia sido roubado da sua herança, passando então a roubar dos ricos para dar aos pobres.

Ao mesmo tempo, duas histórias de ficção exploraram o conceito de alter-ego e de dupla personalidade, embora ainda desprovidos do código moral do herói. A primeira, publicada em 1844, é “O Conde de Monte Cristo”, de Alexandre Dumas, que introduz vários elementos conhecidos dos super-heróis. O marinheiro Edmond Dantes é treinado pelo abade Faria, um monge italiano louco (baseado no monge goês José Custódio de Faria, uma pessoa real, conhecida pelos seus estudos de hipnotismo), aprendendo técnicas necessárias para sobreviver na luta contra os inimigos de quem se pretende vingar. Armado com um tesouro escondido na ilha de Monte Cristo (a sul de Elba, onde o imperador francês Napoleão Bonaparte esteve exilado em 1814), uma personalidade magnética e exuberante e os ensinamentos do abade sobre etiqueta e combate, que lhe permitem movimentar-se tanto na alta sociedade como no submundo, Dantes é praticamente outra pessoa depois de assumir a identidade de Monte Cristo. Passaram-se quase 20 anos desde que os seus amigos e inimigos o viram pela última vez e ninguém o reconhece ou sequer imagina que pode ser o mesmo homem. É praticamente um Batman desprovido de moral.

A segunda é “Dr. Jekyll e Mr. Hyde”, a famosa história de Robert Louis Stevenson, publicada em 1866. A sua influência é óbvia no Hulk, mas pode ser vista noutras obras, em especial quando envolvem a Sociedade da Justiça da DC Comics, na pena de James Robinson. Henry Jekyll, um químico, consegue isolar uma substância que liberta o seu id, que se manifesta na personalidade misantrópica de Edward Hyde. Apesar de Hyde ter uma aparência física diferente de Jekyll, a preocupação de Stevenson era explorar o conceito de moralidade vitoriana. Hyde representa o id de Jekyll, a parte mais animalesca e instintiva do comportamento humano, que Jekyll considerava maligna. Ao tornarem-se identidades separadas, Jekyll perde a vontade de viver, pois não tem instinto de autodefesa nem desejo sexual, enquanto Hyde é completamente desprovido de consciência e racionalidade, não conseguindo existir como um ser humano social. Apesar de serem partes do mesmo ser humano, separados são pessoas completamente diferentes. James Robinson explorou levemente uma ideia semelhante em “The Golden Age”, a sua mini-série Elseworld sobre personagens da DC dos anos 40. Na história, superpoderes são derivados de uma radiação estranha que Ted Knight atraiu para a terra. Knight, a identidade secreta de Starman, postula que heróis sem poderes também são afectados, respondendo às necessidades do id e adoptando comportamentos pouco característicos, como usar máscaras e combater o crime. Robinson fez uma derivação na série do Starman, em que Ted confessa ao seu filho Jack que manteve uma breve relação sexual com a Canário Negro quando ambos trabalharam em conjunto.

Até aqui, a identidade alternativa surgia, geralmente, como um distúrbio mental ou como necessidade de vingança. Apesar da ficcionalização do Spring-Heeled Jack como um novo Robin Hood, faltava um imperativo moral como peça central da identidade secundária.

Texto: Paulo Costa

Obrigado ao Paulo por mais um bom texto, e espero ansioso pela segunda parte! Para ver os outros textos deste colaborador basta clicar em cima do nome dele.
;)

Boas leituras

13 comentários:

  1. Excelente texto arrisco mesmo a dizer, é bom ver algo assim com a estrutura de um texto histórico, uma qualidade acima da média e a relacionar com a BD e a influência na mesma.

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  2. Hugo Silva
    Este foi um excelente texto do Paulo Costa, sim!
    Concordo contigo a 100%!
    Vamos a ver a parte II que deve ficar online este fim de semana!
    ;)

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  3. Ótimo texto Paulo! Pega deste o ínicio, para nos contar a história da identidade secreta, muito legal!

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  4. O texto é realmente excelente. A identidade secreta está arraigada no sentimento humano tanto quanto a mentira e a sedução.

    Todos (e digo "todos" mesmo, ninguém é exceção) têm a vontade nata de se diferenciar de seu "eu" público e visível em alguma parte da vida. Se transvetem de outras personalidades e qualidades (ou defeitos) para benefício próprio, dos outros e etc. Para o bem e para o mal.

    Que outra explicação tem a moda e as flutuações de tendências, senão para mascarar e enaltecer alguém que se sinta sem brilho ou atrativos de outra forma? Se disfarçar é agregar valor.

    Identidade secreta é a forma que todos temos, impunemente, de conseguir coisas que, de outro modo, influenciariam nossa vida comum. Uma maneira de preservar sua vida estável. Mas também é a dica para melhorar e maquiar uma personalidade normalmente apagada e ineficiente.

    Inclusive, acredito que se ter uma identidade secreta é a gande chave a impulsionar redes sociais. Lá, qualquer pessoa pode se recriar como realmente gostaria de ser, sem que isso afete ou repercuta em sua vida offline. O que, no fim das contas, acaba por se tornar um novo universo em si: muitas pessoas são mais reais em seus avatares (identidades que mostram o que elas realmente têm em seu núcleo) do que fora deles.

    Postagem maravilhosa. Grande abraço. 8)

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  5. Guy Santos
    Este fim de semana mais uma parte!
    "Stay tunned"
    ;)

    Pensador Louco
    Um comentário óptimo! Acho que fizeste um bom apanhado das "identidades secretas" de toda a gente! O Facebook não deixa de ser isso mesmo para muita gente!
    :)

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  6. Excelente abordagem do amigo Paulo Costa sobre o tema. Gostei muito do texto.

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  7. Fico aguardo dos próximos artigos. Se formos pensar todos temos de alguma forma identidades secretas, pois vira e mexe nos escondemos atrás de mascaras.

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  8. João Roberto
    Também gostei muito desta abordagem a este tema!
    Já tens a 2ª parte online!
    ;)

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  9. acho que Ivanhoe, de Walter Scott usava uma identidade secreta, não me lembro bem.

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  10. Pentacúspide,

    O Ivanhoe usa o mesmo truque da lenda de Robin Hood de se disfarçar para participar num torneio, embora aí seja de cavalaria e não de tiro ao alvo. Quem usa uma "identidade secreta" no livro é o rei Ricardo Coração-de-Leão, que se disfarça como Cavaleiro Negro.

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  11. Paulo Costa
    Também se pode considerar que Ivanhoe se apresenta com uma identidade secreta, o Desdichado, até ao final do torneio!
    Embora seja durante pouco tempo, claro, o Cavaleiro Negro só bastante tempo depois se sabe que é o Rei Ricardo Coração de Leão!
    :)

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  12. Sim, mas eu aqui considero mais um disfarce do que a criação de uma nova identidade.

    O trabalho que Dantes tem em criar Monte Cristo é bastante mais complexo e exige muito mais entrega pessoal do que o que fazem Ivanhoe e o Rei Ricardo.

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  13. Paulo Costa
    Sim, tens razão... mas por vezes a diferença entre identidade secreta e "disfarce" é bastante ténue!
    ;)

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