domingo, 27 de abril de 2014

A Palavra dos Outros: O dia em que a DC tentou matar a Marvel


Mais uma crónica de Paulo Costa. Desta vez sobre a indústria dos comics na sua transição da Golden Age para a Silver Age.
:)

O dia em que a DC tentou matar a Marvel

Nunca vi nenhum historiador sério do meio da banda desenhada americana falar disto. Provavelmente, não há ninguém vivo que possa atestar a veracidade da minha afirmação. E as provas a favor são meramente circunstanciais. Mas faz sentido, à luz de acontecimentos semelhantes da época. Eu acho que a DC tentou retirar a Marvel do mercado de BD em 1957, aproveitando uma súbita fragilidade no sistema de distribuição.

Eu pensei se valia a pena escrever isto. História da BD já tem um interesse limitado, história de certas editoras parece só ter interesse quando lida com personagens mais conhecidos, e história da indústria da BD é para um grupo ainda mais restrito. Não fala da arte e não fala de personagens. Mas fala de pessoas e das suas acções, e é por isso que me interessa. Este período da Marvel, poucos anos antes da criação do Quarteto Fantástico, é um que me atrai profundamente. Mas o que tem a DC a ver com a Marvel em 1957?

Foi em 1956 que Martin Goodman fechou a sua própria distribuidora, a Atlas News Company, por motivos financeiros, assinando com a American News Company, uma companhia que tinha o monopólio da distribuição das revistas de má fama, incluindo BD, como a Dell, cuja revista “Walt Disney Comics & Stories” era a mais vendida da época. Devido à facilidade de acesso da ANC aos mercados, a escolha de Goodman, que estava habituado a fazer dumping do seu material, fazia sentido. No entanto, na época, o Departamento de Justiça tinha colocado a ANC em tribunal, sendo uma das motivações o esquema ilegal de vendas por acréscimo (ex: “Queres 10 Marias? Tens que distribuir 20 Burdas”). Era este sistema de vendas, usado pelas distribuidoras associadas às editoras de BD, pulps e soft porn, o verdadeiro alvo da comissão senatorial de investigação dos efeitos da BD na delinquência juvenil, uma vez que, ao contrário desta, era perpetrada por grupos com ligações ao crime organizado.


Martin Goodman

A fim de evitar o desfecho natural, em junho de 1957, os proprietários da American News fecharam as portas da companhia, deixando dezenas de pequenas editoras desamparadas. Uma delas era a Marvel, que ainda não se chamava Marvel (na verdade, Goodman tinha no activo 57 companhias diferentes, todas a operar no mesmo escritório e com os mesmos empregados). Goodman foi ter com o seu velho amigo/colega/adversário/concorrente, Harry Donenfeld, um dos proprietários da National Periodical Publications (mais conhecida como DC), bem como da sua própria distribuidora, a Independent News Distribution. Donenfeld não o deixou distribuir mais que oito revistas por mês.

É aqui que entro no reino da especulação. Donenfeld, o seu sócio na DC Jack Leibowitz, Goodman, Louis Silberkleit, Maurice Coyne (dois dos fundadores da Archie Comics) e Paul Sampliner trabalhavam no mesmo meio havia várias décadas, ora formando companhias de distribuição e impressão uns com os outros, ora vendendo-as (às vezes uns aos outros) e tornando-se rivais com projectos paralelos. Estas constantes trocas eram óptimas para a ‘contabilidade criativa’ que se fazia na indústria dos pulps nos anos 20 e 30. Portanto, em 1957, Donenfeld e Goodman conheciam-se há mais de 20 anos, e o primeiro estava familiarizado com as práticas de negócio do segundo. Goodman era perito em construir fortunas tostão a tostão. Se ficasse impedido de praticar o seu método tradicional de dumping, por vezes com cinco títulos praticamente iguais no que ele percebia ser o tema popular dessa semana, Goodman teria dificuldades em adaptar-se. Afinal, não mudava de táctica há décadas.

A DC podia ter algum interesse nisso, para se livrar de alguma concorrência. Muitas das editoras rivais tinham fechado as portas nos anos a seguir à Segunda Guerra Mundial:
-Em 1946, Harry A Chesler tinha deixado de publicar em nome próprio, passando a ser apenas um estúdio.
-Em 1948, a Holyoke deixou de publicar BD para se concentrar no ramo mais rentável das revistas para crianças.
-Em 1950, Victor Fox, um mestre da ‘contabilidade criativa’, encerrou a Fox Feature Syndicate, com dívidas de mais de 800 mil dólares. Fox já tinha estado envolvido em casos de fraude e foi o instigador do famoso caso Wonder Man, uma cópia vergonhosa do Superhomem, criado por Will Eisner por ordem de Fox em 1940.
-Em 1953, a Fawcett Publications saiu de cena devido às baixas vendas, efectivamente encerrando o conflito judicial com a DC por causa do Capitão Marvel (supostamente outra cópia do Superhomem) mas continuou envolvida noutras áreas, nomeadamente livros, uma divisão que, ironicamente, hoje pertence à Warner.
-Em 1954, Bill Gaines e a sua EC Comics foram a primeira vítima dos obstáculos comerciais causados pelas regras da Comics Code Authority, mantendo no activo apenas a revista “Mad”. No mesmo ano, o mesmo aconteceu à Fiction House, conhecida por Sheena, a Rainha da Selva. É preciso recordar que as regras da CCA foram criadas pelas principais editoras (Archie, Harvey, DC e Marvel) precisamente para retirar as revistas destes concorrentes de cena.

Harry Donenfeld e Jack Liebowitz

-Em 1956, Lev Gleason e a Ace Comics de Aaron Wyn tiveram os mesmos problemas que Gaines e foram à falência. No mesmo ano, Ned Pines encerrou calmamente a Standard Comics, continuando ligado à publicação de romances de cordel.
-Finalmente, no início de 1957, a Quality Comics de Busy Arnold também fechou as portas por vendas baixas, vendendo alguns títulos à DC. Outras editoras, como a Crestwood Publications, a Charlton Comics ou o American Comics Group, sobreviveram, mas com uma quota de mercado bem inferior.
-A MLJ já se tinha transformado na Archie Comics, a Harvey estava muito bem de saúde com os direitos dos personagens da Famous Studios (como Richie Rich, ou Riquinho, em português) e ambas tinham sucesso num nicho mais infantil. Apenas a Dell Comics, que não precisava do selo do Comics Code por ter os direitos de publicação de personagens da Disney e da Warner, dominava o mercado e era intocável para a DC, mas nenhuma destas apostava em revistas de guerra, de romance e de aventura.

Nestas circunstâncias, a única grande editora que sobrava no caminho da DC era a Marvel, na época conhecida colectivamente como Atlas. Limitado a oito títulos por mês, Goodman optou por 16 revistas bimestrais, divididas por vários géneros. Personagens permanentes eram poucos, como era normal para a altura. Os títulos escolhidos foram de guerra (“Battle”, “Marines in Battle”, “Navy Combat”), western (“Gunsmoke Western”, “Kid Colt Outlaw”, “Two Gun Kid”, “Wyatt Earp”), humor (“Homer the Happy Ghost”, “Millie the Model”, “Patsy and Hedy”, “Patsy Walker”), romance (“Love Romances”, “Miss America”, “My Own Romance”) e ficção científica (“Strange Tales”, “World of Fantasy”). Alguns destes acabaram substituídos nos anos seguintes.

Felizmente para Goodman, a quantidade reduzida de títulos era o que o editor Stan Lee necessitava para se preocupar mais com a qualidade. Surgiram algumas lendas urbanas relativas a esta época. Uma é que Goodman encontrou um armário cheio de arte não usada e impediu Stan de comprar mais material. Na verdade, com o número reduzido de títulos, havia inventário suficiente para encher as revistas durante quase um ano, não era preciso encontrar um armário. Outra é que Jack Kirby chegou ao escritório, encontrou Lee a chorar e este pediu-lhe que salvasse a companhia. Kirby tinha acabado de se desentender com o seu editor na DC, Jack Schiff, e estava à procura de mais trabalho, mesmo que fosse com o homem (Goodman) que o tinha enganado 15 anos antes, e Lee precisava de encontrar alguém para substituir o falecido Joe Maneely como criador principal de conceitos. E, finalmente, Lee tinha pensado em deixar a BD e mudar-se para objectivos mais literários. É possível, mas Lee não tinha motivos para se preocupar com alternativas de emprego. Tinha à sua disposição artistas como Kirby, Ditko, Ayers, Sinnott, Adkins e Heck, tanto Kirby como Ditko eram capazes de emprestar às antologias de terror e ficção cientifica a identidade necessária para se diferenciarem da concorrência, e Stan Goldberg continuava responsável pela arte do perene título de humor adolescente, “Patsy Walker”. Financeiramente, não fazia muito sentido para Lee sair da companhia, embora, criativamente, a presença destes artistas e o facto de não ter que se preocupar com dezenas de revistas possam tê-lo inspirado a produzir para além dos cânones de qualidade mínima impostos pelo seu patrão. E terá sido assim que o tiro da DC saiu pela culatra.

Vale a pena mencionar um epílogo. Supostamente, em 1961, Jack Liebowitz terá dito a Martin Goodman num jogo de golfe que a Liga da Justiça, uma revista de superheróis, estava a vender muito bem. Embora tanto Goodman como Liebowitz jogassem golfe, Goodman tinha a sua própria rede de espiões dentro da distribuidora (para garantir a veracidade das vendas da Marvel reportadas pela IND) e é mais provável que os dados viessem daí. O próprio Stan Lee era contra a ideia de relançar os superheróis, depois do falhanço de 1953, e é interessante ver como brincou com o tema até que todos os novos títulos tivessem sido lançados e as suas histórias se solidificado num novo conceito, o universo partilhado. A Marvel só teve que esperar até 1965 para ultrapassar a DC na tabela de vendas e, em 1974, acabou por ser mesmo Marty Ackerman (dono da Cadence, empresa que tinha comprado a Marvel em 1967) a fazer uma oferta a Liebowitz para adquirir a DC. Liebowitz recusou.

Texto: Paulo Costa

O meu obrigado ao Paulo Costa por mais um artigo, e já sabem, para ler as outras crónicas dele basta clicar no seu nome!

Boas leituras

4 comentários:

  1. Na verdade essa história da DC distribuir a Marvel e ter limitado a quantidade de títulos desta para impedi-la de usar o velho sistema de inundar o mercado com títulos (que a Marvel usa até hoje...) é BEM conhecida e presente em todos os livros sérios sobre os comics americanos, como o Comic Book Heroes do Gerard Jones.

    A questão do armário cheio de material pode ser verdade, já que em um primeiro momento Stan Lee continuou a comissionar histórias ddos seus desenhadores, talvez por não querer perdê-los para a concorrência. Mas Goodman cortou-lhe as asinhas quando descobriu e obrigou Lee a publicar tudo quando descobriu. Vários desenhadores deixaram a Marvel (e, em alguns casos, a BD) nesse período.

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  2. A história de limitar os títulos é bem conhecida, eu sei. O que eu especulo é se esta medida foi feita com o propósito específico de eliminar a Marvel do mercado. Existem outros motivos (logística, por exemplo) que podem ser válidos. Mas como os donos das editoras eram mafiosos, uma atitude maliciosa pode ser válida.

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  3. É Uma boa teoria da conspiração e resutou uma vez que a dc fechou e comprou n personagens e editoras.

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  4. Paulo, essa teoria é citada também no livro que eu mencionei e em outras fontes.

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